03/12/2023 - Redação
Em pleno dia das crianças, Juliana Santos, 25, precisou quebrar a promessa que havia feito para a filha Ana Júlia, 2. Mais uma vez, ela teve que adiar a ida da menina para brincar no parquinho perto de casa porque uma espessa fumaça, proveniente de queimadas, encobria a cidade de Manaus.
Mesmo com tão pouca idade, Ana Júlia já sabe que, quando o céu está coberto por uma fumaça com cheiro forte de queimado, não pode brincar na rua. Ela nasceu prematura e, desde as primeiras horas de vida, enfrenta dificuldade para respirar.
Apesar de entender que a fumaça faz mal para sua saúde, naquele dia, Júlia chorou por não poder sair de casa.
"Me corta o coração ver que a minha filha não tem o direito de sair de casa para ir brincar, como eu tive quando era criança. Mas não posso deixar ela sair e respirar uma fumaça tóxica dessas, porque depois ela sofre com crises de asma, não consegue respirar e não dorme por causa da tosse forte", conta a mãe.
Com as ondas de fumaça se tornando cada vez mais comuns na região Amazônica, crianças, como Ana Júlia, têm tido não apenas a saúde prejudicada, mas sofrem também com a falta de acesso a direitos fundamentais, como o de brincar e viver em um ambiente limpo e saudável.
O bem-estar das crianças também tem sido afetados por uma série de outros eventos climáticos extremos, o que levou as agências da ONU (Organização das Nações Unidas) a emitir um alerta de que os efeitos dessas situações na saúde materno-infantil têm sido negligenciados, subnotificados e subestimados.
O documento foi emitido às vésperas do início da COP28, que teve início nesta quinta-feira (30) em Dubai. As agências classificaram como "uma omissão gritante e emblemática" o fato de a maioria dos países não mencionarem a saúde de gestantes e crianças em seus planos de resposta às emergências climáticas.
É o caso do Brasil. Milhares de crianças têm tido sua saúde e cuidados fundamentais afetados por uma série de ondas de calor, secas extremas, chuvas intensas, inundações e incêndios florestais no país.
Ainda assim, o PNA (Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima), instituído em 2016 para orientar iniciativas para a gestão e diminuição do risco climático, não faz nenhuma menção de ações para mitigar os prejuízos a crianças. Em nota, o MMA (Ministério do Meio Ambiente) disse que formou grupos de trabalho para aperfeiçoar o plano e incluir medidas que protejam os direitos infanto-juvenis.
Para especialistas em saúde infantil, políticas nesse sentido são urgentes, já que os efeitos dos eventos climáticos vividos no país causam consequências duradouras e até irreversíveis para o desenvolvimento das crianças.
Eles destacam que os prejuízos podem ser ainda maiores quando a saúde é ameaçada nos primeiros mil dias de vida da criança, que corresponde às 40 semanas de gestação (270 dias) somados aos dois primeiros anos de um bebê (730 dias). Esse período é considerado pelas pesquisas como o "intervalo de ouro" para que a criança atin ja todo seu potencial de crescimento e se torne um adulto saudável.
"É exatamente por ser o período em que as crianças mais se desenvolvem, que elas se tornam também mais suscetíveis e vulneráveis às condições adversas. Tudo o que acontece nesse período é determinante para o resto da vida, afeta a criança em aspectos físicos, emocionais e intelectuais", diz o médico Carlos Augusto Mello da Silva.
O especialista, que é presidente do departamento de toxicologia e saúde ambiental da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), explica que o metabolismo das crianças é muito intenso nessa fase, por isso as condições ambientais têm tanta influência em sua saúde e desenvolvimento.
"Elas são uma máquina de crescimento nesse período, o que demanda muita energia. Por isso, elas respiram muito mais do que um adulto, consomem muito mais água, têm batimentos cardíacos mais acelerados. Assim, a poluição do ar, o calor ou seca extremas têm efeitos muito mais graves para as crianças, porque vão inalar mais poluentes ou desidratar com mais facilidade."
Com os eventos extremos se tornando cada vez mais comuns, uma das medidas necessárias para proteger as crianças será, por exemplo, mantê-las por mais tempo em áreas internas para evitar a exposição ao calor e ao ar seco e poluído. Esse tipo de proteção, no entanto, pode prejudicar o desenvolvimento em outros aspectos.
É o que preocupa Juliana por precisar deixar a filha tanto tempo dentro de casa quando a fumaça toma a cidade. "Ela é filha única, ainda não vai pra escola. Ela costuma brincar com outras crianças no parquinho, por isso, sente tanta falta", conta a mãe.
Alessandra Dias, 32, professora de educação infantil em uma escola de São Paulo, sente angústia nos dias de calor extremo, quando não pode deixar as crianças brincarem no parquinho. "É nítido como eles ficam mais irritados. Não só pelo calor, mas porque ficam limitados dentro da sala. Eles sentem falta de sair, correr numa área aberta, ver o céu."
"Me preocupa pensar que isso vai se tornar mais frequente. Hoje, as ondas de calor duram alguns dias e já é difícil lidar com elas. Imagino qual será o impacto para as crianças que tiverem que conviver com essas situações por mais tempo", diz a professora, que trabalha com uma turma de 2 e 3 anos.
O médico de família Enrique de Barros, que integra o grupo de trabalho de saúde planetária da Organização Mundial dos Médicos de Família (Wonca, na sigla em inglês), diz que a privação do contato das crianças com ambientes externos, especialmente áreas verdes e água limpas, impacta no desenvolvimento físico e socioemocional.
"Nós vimos esse impacto na pandemia, quando as crianças ficaram trancadas em casa. Agora, imagine no futuro, quando elas não puderem brincar porque vamos ter períodos de chuva, calor e seca intensas. Assim, como na pandemia, podemos ter um aumento de casos de obesidade, ansiedade, perdas motoras, atraso emocional."
As agências internacionais alertam que o mundo precisa de ações para frear as mudanças climáticas, mas avaliam que o planeta já vive um nível de alteração irreversível. Por isso, Barros avalia ser importante a adoção de medidas urgentes para mitigar os prejuízos aos pequenos.
"A gente precisa de soluções para o curto e médio prazo, como aumentar as áreas verdes em escolas e nas cidades para ajudar na redução da temperatura local. Trocar áreas de asfalto ou piso, que esquentam muito, para evitar mais emissão de calor ou queimaduras caso as crianças caiam. São questões adaptativas muito importantes e que precisam ser feitas agora."
Por que a saúde das crianças é mais vulnerável às mudanças climáticas?
O organismo das crianças está em desenvolvimento físico, especialmente no período da primeira infância (dos 0 aos 6 anos). Por isso, elas são mais sensíveis a estímulos ambientais;
Por estarem em desenvolvimento, as crianças têm uma atividade metabólica muito mais acelerada que adultos. Elas, por exemplo, respiram 50% mais ar por kg de peso corporal do que adultos -o que aumenta a exposição a poluentes do ar;
Globalmente, mais de 90% das crianças são expostas a material particulado em níveis acima dos permitidos pela OMS, definidos em 5mcg/m3;
As exposições a poluentes do ar durante a gestação podem prejudicar o desenvolvimento do feto, além de comprometer o crescimento e causar danos a órgãos vitais (como o cérebro, pulmões, sistema reprodutivo, nervoso e imunológico). Também aumenta o risco de doenças na infância, com prejuízos à saúde ao longo da vida;
A maior atividade metabólica das crianças também faz com que elas precisem ingerir, proporcionalmente, mais água do que adultos por kg de peso corporal. O que as torna mais suscetíveis à desidratação e ao risco de doenças por contaminação, como gastroenterite;
Crianças tendem a desenvolver mais atividades em ambiente externo do que os adultos. Por isso, são mais prejudicadas por períodos de calor e frio extremo, baixa umidade do ar, chuvas intensas, além de agentes alérgicos e picadas de inseto (como dengue e malária)
Fonte: SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) e Agência e Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês)
A série Infância e Clima recebeu apoio do programa "Early Childhood Reporting Fellowship", do projeto The Dart Center for Journalism and Trauma, da Columbia University
Fonte: Folhapress/Isabela Palhares